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AGATHA CRISTIE, A RAINHA DO CRIME – E DO FOGÃO

 SEM MISTÉRIO Agatha Christie na cozinha de sua casa, na Inglaterra, em  1950.  Ela era fã de pratos simples, como pães e omeletes (Foto: Popperfoto/Getty Images)
SEM MISTÉRIO

Pão de passas (Foto: ÉPOCA)Quando comecei a ler os livros da escritora inglesa Agatha Christie, carregados de suspense e morte, criei uma imagem da autora. Imaginava uma mulher introspectiva, séria, que bebericava uísque enquanto bolava histórias sombrias. A imagem acima mostra quanto eu estava errada. No retrato de 1950, tirado em sua casa, Agatha parece apenas uma simpática senhorinha fazendo bolo para os netos.

A vida culinária de Agatha Christie, tão diferente de sua produção literária, é um dos temas do livro A cozinha das escritoras (editora Benvirá). Nele, a jornalista italiana Stefania Aphel Barzini revela a intimidade gastronômica de Agatha e de outras escritoras célebres, como a inglesa Virginia Woolf e a americana Gertrude Stein. Os hábitos alimentares e sua influência sobre a vida das autoras é o ponto de partida do livro, organizado para descrever a personalidade de cada uma e satisfazer curiosidades dos leitores. “Sempre usei a comida para entender as pessoas”, afirma Stefania. “Dificilmente falha.”

A pesquisa de Stefania mostra que Agatha não escrevia com o copo de uísque a seu lado, como eu imaginava. Ela não usava nenhuma bebida alcoólica. Sua companheira de trabalho era uma taça de creme de leite. Nela, Agatha achava inspiração. “Ela amava comer e fazia isso sem pudores”, diz Stefania. “A comida a fazia feliz.”

Agatha amava cozinhar desde a infância – algo incomum para uma moça classe alta britânica, que cresceu cercada por cozinheiras. Em 1901, quando seu pai morreu, ela tinha apenas 11 anos. Enquanto toda a família foi para o funeral, ela procurou conforto na cozinha. Foi lá que Agatha passou o dia, ajudando a empregada da família a preparar o jantar. A comida também trouxe conforto quando seu primeiro marido pediu o divórcio. Nos primeiros dias após a separação, ela perdeu o apetite. Pouco depois, fez uma viagem à cidade turística de Harrogate e passou dez dias comendo tudo o que pôde. A depressão foi derrotada a golpes de garfo.

Assim como Agatha, Gertrude Stein, americana que passou a maior parte de sua vida na França e foi mentora intelectual de escritores como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, também tinha uma relação extravagante com a comida. Num de seus manuscritos, ela confessa: “Amo comer, livros e comida, comida e livros. Desde que eu era pequena, sempre gostei de me sentir entupida de tanto comer”.

Ela e sua mulher, Alice B. Toklas, com quem viveu por 40 anos, eram conhecidas pelos jantares que ofereciam. Em 1933, Gertrude recebeu um convite para fazer conferências pelos Estados Unidos. A oportunidade era ótima, mas ela titubeou. Não tinha uma boa impressão da comida americana, e passar fome era um preço alto demais, mesmo por motivo nobre. Ela pediu para mandarem o cardápio do hotel em que se hospedaria. Depois de analisá-lo, decidiu ir.

FORNO E FOGÃO A cozinha das escritoras traz os hábitos culinários de grandes nomes da literatura, como Agatha Christie e Gertrude Stein (Foto: Divulgação)

Se a relação de Gertrude e Agatha com a comida era de amor declarado, para Virginia Woolf o sentimento era atormentado. Passava às vezes pelo ódio. Autora de Mrs. Dalloway e Orlando, Virginia sofria de esquizofrenia. “A doença e a infelicidade de Virginia Woolf estavam ligadas a seus hábitos alimentares”, afirma Stefania. “Se estava bem, ela comia. Se estava mal, parava de comer.” Virginia associava a gordura corporal ao torpor mental que a consumia. Sofreu de anorexia. Quando as crises passavam, ela voltava a amar a comida. Os alimentos são um tema recorrente em seus livros. Num trecho de Um quarto só para si, escreve: “Um belo jantar é primordial para uma boa conversa. Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não se comeu bem”. Em seu diário, afirma: “Deus, como o sorvete é reconfortante!”.

Além de descrever os hábitos alimentares das escritoras, Stefania reuniu as receitas prediletas de algumas. Em vez de apenas ler sobre a mesa das escritoras, o leitor pode cozinhar e comer como elas. Decidi ir à cozinha para tentar entender melhor a vida de Agatha Christie. Entre suas receitas favoritas, escolhi um pãozinho de uvas-passas. Basta colocar todos os ingredientes numa tigela, misturar com a mão até virar uma massa homogênea e fazer bolinhas para levar ao forno. O resultado é simples e doce, sem nenhum mistério. Nada a ver com os livros da rainha do crime. Se o pãozinho e o creme de leite eram suficientes para aliviar suas mágoas mais profundas, Agatha devia ser uma mulher feliz. Bem diferente da escritora sombria que existia em minha imaginação.

Fonte: Época

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